caption: Anatomy Museum in the University of Edinburgh Medical School, Teviot Place. Photo by Sir Robert Rowand Anderson, 1898.
[no hablo espanol] dá nome a uma categoria de posts do Nihil que passarão a ser escritos na Língua-mãe e se desviarão da orientação temática da casa: a Fotografia.
Não sou professora no ensino superior há muito tempo. Ainda não fez uma década. No entanto, sinto que sou professora de manhã à noite e isso pesa. Tem a ver com a energia que se deixa nas aulas e com as insónias que se trazem para casa quando os alunos nos deprimem ou as instituições nos esmagam. Ao ouvir um colega que manifestava o seu cansaço com o ofício, pensei um dia, muito no início desta odisseia de ser professora, que deixaria de leccionar quando sentisse que já não me dava gozo. Porque os alunos merecem o melhor; merecem a nossa energia toda. Talvez esse dia tenha chegado. Pesa sobre estas constatações o facto de estar precária desde o início, agora como trabalhadora independente, a recibos verdes. Já me chamaram várias coisas, hoje vinga a ideia de “colaboradora”, um ilhéu algures entre o professor e o técnico. São palavras, nomes, catalogações e gavetas. Perante as instituições, nunca deixei de me sentir como um técnico que desempenha um serviço de manutenção. Perante os alunos, tem sido diferente. As coisas oscilam consoante as circunstâncias. Alunos x, na instituição y, na região z, tendem a ser mais isto ou aquilo e as variáveis também se aplicam.
Concluí mestrado (não integrado) e doutoramento, mas às instituições não interessa o que esse conhecimento e experiência trazem consigo e como o mesmo poderia servir a todos, se devidamente alocado. Então, na prática, temos investigadores com um tipo de pensamento tendencialmente rizomático que são colocados em enquadramentos lineares. Quem beneficia deste (des)encontro? As instituições (e aqui não se distingue o público do privado) para quem o mais importante será sempre a taxa de conclusão dos cursos. Interessa-lhes a qualidade, mas apenas na medida em que essa sirva directamente as necessidades de empregabilidade, permitindo deste modo que a marca se continue a promover dentro do mercado de trabalho.
Fui perdendo a paciência com as instituições e elas comigo. Esse desentendimento prende-se normalmente com dois factores (no que me diz respeito): 1) dizer o que penso e 2) ter vontade de participar activamente na melhoria das nossas condições de trabalho. Pois isto, senhores, dá merda! Quando me contam a história do vigário para justificar o modos operandi “da casa”, não sou diplomata. Gostava realmente de ter condições para trabalhar, de poder integrar estruturas que tenham vontade de mudar o mundo, que não se resignem a este modelo educativo; que não vejam nele sequer uma necessidade. Porque, afinal, é essa a questão, não? Se não estamos a conseguir ensinar, porque continuamos a alimentar este corpo moribundo? Para quê?
Durante estes anos fui sentindo coisas muito diferentes em relação ao ensino e a ensinar, mas acho que sempre consegui dar algum sentido às coisas. Nos primeiros momentos de avaliação chocava-me o uso da língua portuguesa e a falta de cultura geral. Percebi que era conversa frequente entre professores, mas rapidamente entendi também que o mais importante é quem os alunos são e não o que fazem. Ao primeiro vislumbre de criatividade esqueço-me das centenas de erros ortográficos que lhes li. Vi sempre alguns alunos a aprender e isso mantém o corpo a flutuar. Já ouvi coisas muito bonitas de alunos. Vejo também na cara de alguns o absoluto desprezo que me têm e o que pensam da figura do professor, em geral. Recordo que estamos a falar de pessoas maiores de idade, mas cuja autonomia (na grande maioria dos casos) se baseia na manutenção das actividades fisiológicas.
A dependência dos dispositivos tecnológicos trouxe mudanças na forma como partilhamos conhecimento, mas sobretudo no modo como eles ESTÂO. Há sempre alunos agarrados ao telemóvel, mas a natureza das minhas aulas perdoa bem isso. O que não perdoa é que o hábito de se escudarem atrás de um ecrã seja transporto para todo o tipo de situações. Daqui resultam comportamentos reptilianos e uma falta generalizada de sentido de responsabilidade. É uma geração neo-liberal que tudo vê como parte de um serviço que paga para receber. Não estão enganados. É isto que a sociedade espera deles.
Talvez a minha capacidade de ver o norte se esteja a perder. Suspeito que o facto de estar com dificuldades em perceber o que se passa no ensino superior tenha a ver com motivos que têm a sua origem fora desse mesmo sistema, mas que, de alguma forma, o contaminam e corrompem. Para este enigma concorrem várias hipóteses: a pedagogia no espaço familiar; o sistema educativo na íntegra; as mudanças tecnológicas; (mil e uma outras); e – a minha preferida – o sistema capitalista. Parece-me que aquilo que encontro no espaço escolar replica, ipsis verbis, as dinâmicas do sistema capitalista, ainda que muitos andem iludidos com os modelos pedagógicos que julgam estar em implementação neste país.
Na prática, é um jogo de master and servant e se enganem aqueles que pensam que o mestre é o professor. Não é, nem deveria ser; alinhar neste entendimento dicotómico seria perpetuar a pirâmide do conhecimento. Recordando, o professor aqui é um peão, um técnico, um formador ou colaborador. Reforço: não quero com isto dizer que a nomenclatura do operário se traduza num patamar de autoridade ou reconhecimento. O que se pretende assinalar aqui é que os serviços desempenhados, no âmbito desde contrato social em que participamos, devem ser estruturados de acordo e o facto de as instituições se assumirem como facilitadoras de serviços que não dependem dos seus colaboradores leva a que, na prática, sejamos apenas mediadores nesta transacção. E eu deixei de perceber o que raio se está a vender aqui.
Na prática, são os alunos que nos vão orientando, a partir daquilo que conseguimos fazer com eles dentro e fora da escola. É possível avaliar essa medida do que “se consegue fazer com eles” sob diversos ângulos, mas de uma forma ou de outra prende-se com vê-los tornarem-se pessoas mais bem formadas. É certo que eu ensino fotografia, mas não é a avaliação sobre os conhecimentos nessa área que orienta as minhas apreciações. Esses conhecimentos são avaliados como têm de ser, de acordo com os modelos pedagógicos das escolas com as quais colaboro. No final do dia, se um aluno tiver uma trabalho excelente mas uma atitude de merda, falhei (ainda que existam momentos em que dava um braço para ter um aluno de excelência).
É-me fácil dizer que falhei, porque falho. Mas esta não é TODA a verdade. Estou a falhar porque o sistema está virado de pernas para o ar e proporciona uma ideia sobre troca de conhecimentos teóricos e técnicos que se mantém entre uma morte lenta (desde Bolonha) e a emancipação. Por hora, o que temos é poucas horas de contacto para programas curriculares que ainda estão à procura de uma realidade que se adapte a uma série de condições novas. Mas, mais grave do que isto, temos o ensino privado a permitir um tipo de dinâmica que eu só reconheço no ensino secundário. A este problema acresce o das universidades tornadas fundações e a proposta de alteração do regime das propinas, que é apenas a constatação de uma mudança há muito em curso e que vai transformar as licenciaturas em anos de transição, permitindo deslocar (e aumentar) os custos para as pós-graduações. Mas o precário só está mal se quiser, porque ele/ela na verdade nunca ESTÁ mesmo em lugar algum. E eu sou isso mesmo: um trabalhador precário.
Em pouco mais de 7 anos leccionei pelo menos 10 unidades curriculares diferentes (deixar de contar), em 3 instituições com modelos radicalmente distintos. Tive, obviamente, de estudar para todas e de preparar aulas para tudo isto, adaptando-me aos modelos pedagógicos. Não se espera outra coisa. Talvez seja por causa dessa capacidade de trabalho e investigação que, no ensino superior, se insiste na elevada formação académica dos professores, ainda que não se contratem. Sucede que estes professores capazes que não deixam de investigar, de produzir e de experimentar, são depois “chamados” para fazer número. Não fazem parte das equipas por causa do seu conhecimento, mas porque os departamentos precisam de x pessoas doutoradas. É o capitalismo, já disse. As contas têm de bater certo para um dos lados.
Na prática, esses professores capazes, cujo trabalho é invisível, são chamados para fazer o trabalho de um professor de 2º ou 3º ciclo. Os alunos aparecem-nos como que vindos de Marte, sem saber ler ou escrever. Ainda não sabem colocar a voz. Conhecem algumas orientações de boa convivência social, mas a ideia de respeito e honestidade é-lhes frequentemente estranha. Estes miúdos vão ser esmagados pelo sistema e ainda não sabem. Vivem numa bolha, protegidos por um serviço que pagam (e bem) e que obriga os seus colaboradores a mudar-lhes a fralda e a amparar-lhes todas as quedas. Alguns destes miúdos vão sobreviver. Uns vão sair incólumes da experiência e passar para outra. Outros vão achar a experiência transformadora e encontrar o seu rumo, mas muitos seguirão com as suas frustrações e de canudo em punho replicarão a dinâmica servil a que se dedicaram. Num momento de desânimo, dizia a um colega que 90% dos alunos se comporta como macacos, sem consciência de si mesmo ou pensamento crítico. A coluna inclusive vergou. Ao primeiro sinal de inquietude ou frustração, choram; ao primeiro desafio, sucumbem. Muitas vezes dou por mim a chamar-lhes “criaturas”, tentando avivar o primata neles. As experiências pós-licenciatura são diferentes. Apesar de as condições de trabalho se manterem, é mais frequente encontrarmo-nos com pessoas que são alunos, junto de quem é possível experimentar formas diferentes de ensinar.
Também se sente, amiúde, que a palavra “dinheiro” surge descontextualizada, como se ocupasse o lugar da palavra “dedicação”. Nunca vi isto no ensino superior público, mas no privado tenho demasiadas vezes a sensação de estar a “entretê-los”, a ajudar a passar o tempo, até que o dinheiro surta finalmente efeito e lhes dê o tão aguardado canudo. Agora que escrevo, abro a caixa de correio e, nem por acaso, mais uns emails de alunos. Coisas de ordem psicológica, como é frequente. Sim, porque para além de ser trabalhadora independente a exercer funções de professora, também sou uma burocrata, uma secretária e uma psicóloga. Vai tudo em 1 que sai mais barato. É uma espécie de one woman show que faz barulho por todo o sítio onde passa. Convenço-me, cada vez mais, que o sistema ruiu e ainda ninguém deu início às cerimónias fúnebres, apesar de eu já estar no cortejo. Vou estupidamente sozinha. Levo a pandeireta, o bombo e a gaita de beiços.
Não tenho por hábito construir críticas em torno de problemas para os quais não vejo solução, mas a verdade é que aqui não vejo. Sinto isso hoje, em toda a sua verdade: não há volta a dar; é mandar abaixo e construir de novo. Quando falar de honestidade e de respeito com os alunos se começa a assemelhar a uma aula de cultura clássica em que toda a gente boceja enquanto encosta os pés nas cadeiras da frente, alguma coisa está errada e para resolver essa “coisa” então se calhar não podemos dar aulas. Teremos antes de ter conversas sobre civismo, ética, psicologia e história? Numa das escolas onde “lecciono” escutei uma abordagem diferente: parece que a ideia é adaptarmo-nos às características dos alunos, não as vendo como limitações. Passo a explicar: se os alunos não sabem escrever, nem articular ideias, então que passem a expressar-se de outra forma. Incrédula, perguntei como seria depois num contexto de trabalho, como dialogariam com o empregador, em que língua responderiam a emails? Alguém sugeriu que comunicássemos por emojis, mas julgo que a proposta não vai fazer história.
Tenho muito apreço por professores de ensino básico e secundário. A minha mãe foi uma dessas operárias durante muitos anos. Cresci com isso, a vê-la trabalhar de manhã à noite e madrugada adentro. Parece que não aprendi nada. Nem em relação ao que fazer, nem ao que evitar. Não tenho perfil para professora do secundário (fiz a experiência um ano e confirma-se), mas o que fazer quando o secundário se muda de armas e bagagens para o superior? Hoje desabafei com um amigo que talvez tenha chegado a hora de deixar de dar aulas para conseguir voltar a ter esperança na humanidade. E é isso por hoje. Parece dramático, e é. Mas talvez a guerra da educação não seja a minha. Afinal, não sou professora, mas uma mera trabalhadora independente a recibos verdes.
https://www.revistapunkto.com/2018/10/a-morte-das-universidades-noam-chomsky.html
https://www.revistapunkto.com/2017/05/estudantes-giorgio-agamben_17.html